Os sentimentos foram construídos pela linguagem do olhar. Não havia encontros de palavras ou toques. Havia na verdade uma barreira, um espaço que separava João e Maria. O rio perene dividia seus mundos, a água cristalina refletia ambas as imagens com uma perfeição de cores dos desejos mútuos. Sem pontes e barcos que pudessem promover uma aproximação, o amor foi nutrido no ritual diário de se olharem por alguns instantes, à margem do rio. A barreira tornava-se cada dia mais invisível, era como se fosse apenas um vidro transparente que naquele instante impedia que os dois comungassem um afeto, uma carícia. O importante é que havia algo singular, o olhar. “O olhar é muito mais do que função fisiológica. É uma linguagem forte. È um universo carregado de sentido. É condensação do mistério do homem. Relata o destino de muita gente. Provoca alterações decisivas na vida”. Seguro dos sentimentos, apesar das adversidades, João finalmente resolveu mergulhar no rio e partiu para encontrar Maria, lá do outro lado, na particularidade do seu mundo, seus mistérios e segredos... tomados pelo sentimento do amor, João e Maria, embalados pelo pensamento de Octávio Paz: “Amar é despir-se de nomes...” revelaram-se, e na cumplicidade finalmente das palavras - as promessas, os sonhos, os desejos, as prioridades... ambientados em contextos diferentes, João sentia-se preso e Maria via-se alçando vôos, descobrindo novos caminhos... ambos concretizaram o amor que outrora fora configurado no olhar. Semearam desde então a força torrencial da paixão e foram embebidos pela magia da felicidade, deleitaram-se no prazer, e no leito do amor, as júrias, os planos mas... João e Maria se perderam, é exatamente isso: se perderam... há situações que simplesmente nos fogem as explicações, ficam silêncios, dores, questionamentos. Reabilitados em suas realidades, certamente partilhando da mesma saudade, João e Maria se afastaram daquele rio que embora retratasse divisão também os aproximavam, e assim, reconstruíram com solidez vidas individualizadas. O tempo passou, e ambos seguiram seus destinos, levando um do outro, talvez saudade, a descoberta do amor, um pouco de dor, a ausência de um entendimento, um silêncio interpretativo, dúvidas... o rio caiu no esquecimento, João e Maria já não os visitava como antigamente, muito raramente por coincidência eles se viam cada um do seu lado, mas fugiam do olhar. Um dia João e Maria se reencontraram de verdade, corpo a corpo, e embora não houvesse mais a vidraça que lhes permitiam apenas o olhar, que fecundou a história de amor, João e Maria pareciam dois estranhos, negaram a presença da matéria e renunciaram para sempre o encanto daquele olhar... João e Maria sequer se encararam na busca de revelar seus monstros, suas raivas, suas angústias... certamente João e Maria temiam seus olhares, porque eles novamente poderiam revelá-los.
Acredito que João e Maria têm medo de descobrirem realmente a essência dos seus sentimentos hoje.
Não é difícil compreender as atitudes de João e Maria, eles são humanos, e o ser humano carrega consigo mistérios. Tudo isso na verdade, é um grande mistério. (HODIE)